03/06/2008

Seis milhões

O-olha pra mim... Eu estou cansada, meus braços m-minhas pernas, estão todos fartos, tudo... esgotado. E é porque... E é porque você também está assim. Me preocupa tanto saber que o que me dediquei até agora tem sido... em vão! Tem sido como um curinga que se pode descartar quando não precisar mais, ou que nem se cogita usar naquela partida. Mas é que... em todas as suas partidas em fiquei fora, eu fui o curinga das suas 52 cartas de baralho... Mas eu me vanglorio, sabe? Sabe que o curinga é a única peça do baralho que sabe falar por si mesma? Que sabe se expressar tão bem que as outras têm inveja? Ah, mas não! Que sentimento feio! Eu prefiro te amar e perder as esperanças uma vez em cinco milhões, novecentas e noventa e nove mil... A não ser que valha a pena perder as esperanças cinco milhões, novecentas e noventa e nove mil vezes... Mas... M-mas é que não se pode compreender às vezes a sua capacidade de não prestar atenção em mim, que estive tão primeiramente fazendo parte da sua vidinha medíocre, sempre achando que ela valia mais do que cinco milhões, novecentas e noventa e nove mil outras vidas... V-você... Você já parou pra pensar o quanto essas vidas significariam pra você se por acaso te empurrassem do trilho do trem quando ele estivesse enlouquecidamente se aproximando, te fizesse massagem no peito pra você reviver, te dessem um comprimido de dor de cabeça, até um milagroso remédio pra curar a gripe?! E nunca parou pra ver também que não se precisam de tantas pessoas assim quando se tem um único e disponível ser vivente capaz de mudar toda a sua história te salvando dos medos que te afligem quando vai tentar dormir e não consegue... É tão chato... Tão ruim perceber que muitas vezes você ri de coisas e compartilha com outras pessoas... É tão difícil ver o quanto o olhar pode pesar...? Eu digo sempre que o poder de um olhar é muito mais perigoso que você tentar desvendá-lo... É curioso né? Você pegar uma criança olhando através de uma vitrine de doces e o bombom de rum estar pedindo pra ser degustado e de repente aquela criancinha... Tão inocente, sem nem saber direito quais os ingredientes daquele bombom, segura com as mãos tão cuidadosas e firmes, como se aquilo fosse a última coisa que fosse comer naquele dia e você finalmente pára pra pensar... “Eu nunca fui assim com você, eu posso até ter dito umas coisas, mas pareceram tão vagas né? Será que você pode me perdoar?”. Nossa, eu te perdoaria até o fim do mundo, se você conseguisse enxergar que o que você tem nas mãos realmente vale a pena. Mas cuida ta? Se você cuidar eu prometo! Prometo que te farei dormir como nunca você imaginou... É só colocar a cabeça sobre o travesseiro, virar para um lado e fechar os olhos. E a última visão que terá é de minha mão sobre seus cabelos e depois disso um sorriso antes que adormeça pra acordar amanhã... Talvez depois de horas, minutos, segundos... Tudo depende de quanto tempo eu permanecer ao seu lado cantando cinco milhões e novecentas e noventa e nove mil canções de ninar... E-eu estou aqui... Uma figura prostrada diante da luz de um fim de túnel. Eu visto uma blusa sob um casaco azul-céu e uma saia longa e brilhante... Só que não se pode ver... Só o cinza, o cinza de uma mente que está esmaecendo e enfim não consegue... Ver mais nada... Você lembra que eu estendi a mão pra você e você deu um tapa, um riso de canto e saiu? Não, você não sabia exatamente o porquê de eu ter estendido a minha mão. Não foi por um tapa, nem um riso, muito menos por um desviar de olhos... Foi porque por um segundo eu desejei que você tocasse e entrelaçasse os dedos bem fortes, assim... Pode sentir? Eu nunca desejei tanto isso quanto agora... E acho que você nem imaginava que era assim né? Tão bom... Você viu que fechei os olhos? Aqueles grandes olhos azuis num rosto tão pálido e sem esperanças... Eu vi sua reação, você foi uma ilusão, uma distração... Mas que poderia ter, hoje, sido mais que isso se um dia você me considerasse mais que isso... Eu poderia estar me sentindo bem melhor agora, em ver você de novo... Como antes... Mas cinco milhões, novecentas e noventa e nove mil outras pessoas estão assistindo de camarote o estardalhaço que estou cometendo por alguém que não está nem aí... Mas não se preocupe, porque em algum lugar por aí eu vou estar... E-e... Olhando docemente pra você, vendo você se ferrar ou não... Isso não vai me fazer bater na sua mão e nem rir, mas eu continuarei esperando até que você consiga me fazer aparecer diante dos seus olhos quando começar a compreender que tenho braços e pernas que nunca se cansaram por sua causa... Em algum lugar por aí. Eu te amo... Você pode sentir isso seis milhões de vezes?



02/06/2008

Chocolate Quente

Alison ajeitou os cabelos negros tirando-os dos olhos e da testa no qual grudavam e os amarrou firmes numa varinha de madeira. Sorriu para Anna enquanto a irmã enfiava o dedinho pequeno no encorpado chocolate derretido. Transbordavam as bordas da grande panela de ágata daquele líquido denso e escuro, borbulhava como lava de vulcão ativo, e estava quase tão quente quanto! Vai saber por que a menina não havia se queimado! Mas saboreou a mistura no dedo como se fosse algo maravilhoso que fizesse as papilas gustativas saltarem de felicidade. E naquela mistura havia um leve sabor de conhaque, fazia Alison querer encher uma xícara até a boca e cobrir aquela mistura quente e doce com chantili branco e viscoso. Os olhinhos escuros de Anna brilhavam perolados pedindo um pouco pra si. Mas fora mais que isso até! Alison deixou que a irmã se embebedasse de todo o chocolate que restava da panela, e mesmo tão quente, aquilo lhe desceu tão gostoso e numa temperatura surpreendentemente aturável. Elas riram felizes e saciadas, provocando soluços na menorzinha... E Alison, com os cabelos que voltavam a cair sobre os olhos desenhava com a mistura em seu dedo um coração dos dois lados da face de Anna.

- Você está feliz?
- Eu estou e você?
- Eu também estou...

Alison teve que despedir-se, teve que terminar o chocolate quente e nunca mais fazê-lo junto à irmã. Mas ela nunca esquecera daquela noite. Conheceu muita gente nova e esqueceu-se de alguns momentos, mas nunca daquele. Ela sempre guardava consigo um fiozinho de cabelo louro colado a uma agenda que andava sempre dentro de uma grande mochila verde de viagem. Era o fio de cabelo da irmã, que agora deveria ter 26 ou 27 anos...
Anna a abraçou, afagou e apertou o corpo da irmã contra o seu próprio e ela tinha lindos 27 anos bem vividos. Um tanto mais nova que Alison, que gostava de ter aproveitado até agora seus 34 comendo e se deliciando com chocolate quente com gosto de conhaque... E depois desta manhã reuniram-se as duas numa pracinha, cada uma com uma grande xícara de chocolate. E nem importava se estava frio ou grudento, quente ou em ponto aquoso, o importante é que depois de longos anos elas voltaram a se ver e a embriagar-se juntas.

- Você está feliz?
- Eu estou e você?
- Eu também estou, e com a mochila cheia de barras de chocolate...




 

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